‘“Nada a fazer”. Assim começa a famosa peça de Samuel Beckett, Esperando Godot, considerada uma obra do “Teatro do Absurdo”, título rechaçado pelo seu autor.
A peça conta a história de Estragon a Vladimir, dois amigos de longa data e idades indefinidas, que vivem na rua e na miséria. Sem família, amigos ou trabalho. Uma espécie de “O Gordo e o Magro” num tom menos cômico, mais sutil.
Esperam por Godot, alguém que nem eles conhecem bem, mas acreditam que possa mudar suas vidas. Ele nunca chega e a peça acaba como começa: na espera por uma mudança que não acontece. A frase citada no início do texto pertence a Estragon e traduz o sentimento de abandono e vazio que paira sobre ele.
Enquanto Estragon “reage não reagindo”, Vladimir representa o milagre de uma alma que luta pela vida, mantendo a esperança apesar da dura realidade.
Consegue amar, cantar e olhar para a natureza, enquanto seu parceiro já se entregou. É bonita a relação dos dois “adoráveis vagabundos” que se sustentam um ao outro, ensinando o que é amar de verdade.
Na dor da sobrevivência. “Esperando Godot é a expressão da dor humana sublimada pela delicadeza”. Na embrutecida espécie humana desfigurada pelos maus tempos, permanecer é um verbo difícil, especialmente se for ao lado de um sofredor (ou perdedor, como queiram).
Beckett foi feliz na escolha de uma “linguagem absurda” para caçoar da vida e de certas realidades tão insuportáveis, que só o deboche ou o humor ácido podem torná-las aceitáveis. Sim, às vezes só a arte pode dar voz e olhar para a miséria humana. A isso deram o nome de “Teatro do Absurdo”.
Vladimir e Estragon passam seus dias e todo o espetáculo esperando Godot, que não vem. Não sabem nada sobre ele, apenas acreditam que “se ele vier, estarão salvos”, como é dito em algum momento da peça.
Os dois anseiam pela dignidade perdida em suas vidas (não se sabe quando ou o porquê), admitindo a ideia de se matarem com naturalidade. A árvore diante deles é um desafio ao enforcamento sobre o qual falam várias vezes. Chegam a tentar, sem sucesso.
O autor não faz rodeios sobre o passado de cada um, apenas informa que eles já estão juntos há muito tempo. O que interessa não é o “como”, mas “onde” eles chegaram. Há saída para quem chega neste estado de vida? Alguém por quem se sente piedade, talvez nojo do seu estado físico?!
A pobre rotina se resume assim: Vladimir pergunta para seu amigo onde passou a noite e ele diz -“numa vala”. Apanhou mais uma vez. Sentem fome, como de costume, dividem suas desventuras e falam em se matar.
Beckett tira uma fagulha do que resta de vida em seus corações, quando ao pensarem em se enforcar dizem “ser uma forma de terem uma ereção”. Consegue falar tudo ao descrever o nada em que se transformaram.
O espectador mais atento vai perceber que o nada é o que espera a todos nós, em algum momento. O “buraco negro” da existência um dia nos engole.
Vladimir tem uma alma mais leve, mantém sua pequena chama acesa e consegue sorrir, cantar e amar. É quem tem mais para oferecer. Pede um abraço, diz que sentiu saudades de Estragon e é sempre generoso com seu amigo, completamente derrotado e esgotado. Não há nada diante de seu olhar, apenas a companhia de Vladimir para quem ele vive dizendo que “devem se separar.” Este por sua vez rebate, magoado: “então por que sempre volta?”.
Recomeçam; Estragon lamentando e esperando a morte, Vladimir alimentando a esperança, protegendo Gogo (forma carinhosa de dirigir-se ao seu amigo) dele mesmo, lutando pela vida com o que ela lhe dá.
Falam de Jesus e de cruz. Beckett não “come pelas beiradas”, ele vai direto ao ponto. Estragon diz que sempre se sentiu como Ele, comparando-se ao Deus sofredor rejeitado pelos homens.
O autor mistura dor e poesia, miséria e beleza com maestria e delicadeza. Seus dois personagens abrem-se sem pudores, pois a vida tirou tudo deles. Vladimir contudo, decide acreditar que há algo bom à espera e Godot é uma dessas possibilidades.
Enquanto vivenciamos o drama que vivem, podemos pensar que nunca seremos Vladimir ou Estragon.
Não é preciso passar fome na rua; a vida pode ser cruel e dura de inúmeras formas e nos colocar na vulnerabilidade de nossos pobres protagonistas.
Hoje temos uma infinidade de recursos que dão bem-estar e a palavra sofrimento é rechaçada com fervor. O prazer como fim e como meio é o deus a se idolatrar. Corpos e rostos desejados, almas em frangalhos. Queremos o corpo e ignoramos o outro. Estragon sempre vai embora para passar a noite na vala, sabendo que vai apanhar; Vladimir o ama mas o deixa ir; Estragon volta mais magoado e destruído fisicamente e culpa Vladimir por tê-lo deixado ir embora. Percebe que seu amigo consegue “ser feliz” na sua ausência. Canta, olha o céu e diz sentir-se bem. Vladimir mantém sua leveza com ou sem Estragon e confessa o quanto é difícil conviver com ele. Precisa estar só para respirar, pois Estragon é “um filho que suga todas as suas forças”.
O amor humano tem seus limites. É preciso fôlego para prosseguir. Os dois apóiam-se um no outro, dividem uma cenoura, até que um terceiro personagem traz mais crueza à história. Pozzo vem acompanhado de Lucky, um empregado que é tratado como animal e escravo. A maldade humana é levada a potências maiores e desafia cada um a reconhecer sua apatia diante da dura realidade. Pozzo exibe-se torturando Lucky, outro destruído pela vida, usado e abusado como um “farrapo humano”. Pozzo diz que aquelas terras são dele, mas também não fala em família ou trabalho. Está numa posição de falsa superioridade e precisa dos dois amigos para o ouvirem e satisfazerem seu ego. Sua aparição não acrescenta nada na vida deles, mas ajuda a passar o tempo, inimigo forte que os massacra a cada dia. Sonham com a morte generosa que os liberte.
A vida real entretanto é mais cruel. Vimos a desagradável cena esta semana de uma comunidade carioca dominada pelo tráfico. Aqueles jovens, tão jovens, entregando suas vidas ao crime só nos faz ver quantos Vladimir e Estragon existem. Creio serem mais dignos de pena e da nossa dor mais profunda que aqueles que representam os esquecidos das ruas. São sordidamente enganados por uma mídia cruel, que finge defendê-los para estimular o sistema a se manter. Usam-nos como CPF descartáveis. E a família que perdeu seu herói (não há termo mais justo para designar policiais nestes dias), ainda terá que suportar a dor de vê-lo comparado a qualquer criminoso.
Deixa eu me explicar: toda vida humana é importante. Jovens ceifados de forma tão cruel é terrível de se ver, mas existem situações-limite e o confronto é a pior delas. Infelizmente não há muitas alternativas; ou a sociedade se entrega de vez ou deixa a polícia fazer seu papel. Estão dizimando os policiais, cerceando-os moral e fisicamente e submetendo-os aos piores sofrimentos. Inversão de valores: o crime em primeiro lugar. Já vimos isso antes: “soltem Barrabás”! Será que estamos num palco vivendo um teatro do absurdo de péssima qualidade? O que dizer daqueles que rejeitam o tratamento eficaz de uma doença por questões ideológicas, políticas ou lucrativas? Matar pessoas por escolha e manipulação, enganar um país com discursos falsos, criar inimizades, medo, desemprego, fome, suicídios e falências desnecessariamente é o grande absurdo do século. Haverá outro pior? É possível, o homem contemporâneo acelerou no caminho do erro e pisou fundo. Quem sabe a arte nos apresenta uma alternativa? Esqueçamos a realidade, ela é bem pior que a vida de Vladimir e Estragon. Eles conservam um coração delicado e puro. Esse enredo atual é grosseiro demais, grotesco e demoníaco.
“Esperando Godot” é uma “pausa reflexiva” doce, apesar de triste. Ela nos mostra que “aqueles que parecem mais desafortunados, às vezes estão repletos de poesia”. Godot é um paradoxo da existência humana, mais uma das referências da dramaturgia. Apesar de moderno, já nasceu clássico e consagrou seu autor. Um daqueles textos que não morrem e que sempre valem a pena serem lembrados. Sim, também há lugar para amenidades nesta coluna, que em breve também dará espaço à comédia. Aguardem.