Por Frederico de S. em Março de 1890
Artigo IV do necessário Fastos da ditadura militar no Brasil (1889)
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Tratados diplomáticos e crédito financeiro
Fatais abjeções do regime ditatorial.— Lisonja, degradação e nepotismo. — Ainda a liberdade de imprensa: comissões militares. — O decreto de 23 de Dezembro liberalmente interpretado pelo sr. Quintino Bocaiuva. — Violências soldadescas. — A questão e o negócio das Missões. — O sr. Bocaiuva no Rio da Prata. — O desprestígio do Brasil em Buenos Aires. — Opiniões da imprensa platina. — Humilhações para a dignidade brasileira. — O sr. Bocaiuva radiante. — A cessão definitiva de parte do território nacional. — O que vale esse território. — O Brasil desarmado. — O segredo do tratado. — A máxima de que o segredo é a alma do negócio, transplantada, com razão, do mundo dos negociantes para a esfera da diplomacia do sr. Bocaiuva.— Uma aliança. — O reconhecimento da ditadura. — O Brasil e a Europa. — O crédito do Brasil. — A Ditadura é o descrédito. — Novas medidas compressoras da liberdade. — O sr. Benjamin Constant e o seu singular desinteresse. — A responsabilidade do sr. Deodoro.
O regime do militarismo ditatorial que no Brasil, como em toda a parte, se apresenta como a encarnação da força e da ordem, conduz inevitavelmente ao enfraquecimento nacional e à desorganização social. Faltam-lhe as duas condições indispensáveis à vida normal dos governos, nos povos civilizados: a liberdade para os cidadãos e a sanção popular para os atos do governo. A ditadura encontra por isso em si mesma o seu castigo e a sua destruição. E não há depois talento, não há pureza de intenções que possam salvar um ditador da irrevogável condenação a que o vota a consciência universal.
O governo ditatorial do Brasil está mostrando ao mundo que é hoje impossível governar um país latino sem a liberdade. A ditadura pode conseguir dominar uma nação, mas governá-la, no sentido civilizado da palavra governo — isto é, dirigir a mesma nação, facilitando-lhe a realização eficaz do seu destino — é coisa que a ditadura jamais conseguirá. O governo de um país livre e o mesmo país são entidades consubstanciadas, indivisíveis: o governo é a nação, a nação é o governo. A nação dominada pela ditadura não encontra jamais nessa ditadura a sua própria encarnação. A ditadura é o senhor; a nação é a escrava, tratada com mais ou menos brandura, mas sempre escrava. O que constitui a tirania não é a efusão do sangue; é a usurpação do direito. Os brasileiros conheceram até há pouco, na ordem doméstica, o que eram estas relações entre o dominador e o dominado, entre o senhor e o escravo. A sociedade brasileira sofreu, provenientes dessa escandalosa afronta à justiça, os males que os seus pensadores apontaram, que os seus economistas somaram, e que os seus poetas choraram. A fatalidade reservava, porém, à geração que viu extinguir-se a escravidão doméstica, o espetáculo da escravidão política.
Temos já visto funcionar este regime que parecia impossível no Brasil, atentas as formas exteriores de civilização que aquele país revestia. Continuamos hoje a acompanhar as diferentes fases da estranha transformação que no Brasil se opera. É esse um dever que se impõe a quem tem a consciência da solidariedade humana, e a quem sabe quanto as lições da história são úteis, ou nos venham do Passado, ou se desenrolem, ante nossos olhos, no Presente.
I – A ditadura é o enfraquecimento nacional porque é o regime em que o poder pode tudo e em que o cidadão nada vale. A certeza de que nada é impossível a quem tem o mando é a noção mais deprimente e corruptora que um povo pode aprender. Não há caráter nacional capaz de resistir à ação dissolvente desta ideia. A ditadura instalada é sempre a mestra do aviltamento, a escola da delação e da perfídia, a realização da imagem bíblica, — cadeira de pestilência. E a geração criada sob a ditadura esquecerá para sempre os deveres da liberdade.
O poder, nos países civilizados, tem a norma inviolável que é a lei, expressão da vontade geral: o poder nos países bárbaros não tem outro limite senão a própria vontade do mesmo poder, que pode ir até onde chegar a paciência ou a fraqueza passiva dos governados. A lei é a força harmonizadora das sociedades; o arbítrio é o desequilíbrio e a contradição. A lei tem o caráter impessoal, inatacável que lhe dá a responsabilidade coletiva; a ditadura inaugura entre os povos, pelo medo ou pela lisonja, o fetichismo das pessoas, negação absoluta da liberdade. No Brasil, a ditadura não se tem podido furtar a estas fatalidades da sua natureza.
A leitura dos jornais daquele país é altamente instrutiva: e os diferentes episódios da sua vida governativa, tão anormal, são proveitosos exemplos. O regime de longa e livre discussão, tão largamente praticado no país durante cinquenta anos, era uma preparação nacional para as leis: hoje, o habitante do Brasil não sabe a transformação que um ministro quis dar às leis senão pela surpresa que experimenta, pela manhã, ao ler nos jornais um decreto que altera subitamente as mais importantes relações sociais. E cada dia os fatos provam brutalmente que o poder tudo pode. É portanto natural que cresça entre o povo o temor de quem tem um poder tão absoluto; do temor passa-se à lisonja, da lisonja desce-se à abjeção. Os governados aviltam-se. Os governantes abusam.
O regime republicano que depôs uma dinastia vai insensivelmente criando outra. A autoridade está, sob muitos pontos da vista, personificada na família do chefe do Governo Provisório. Esta estimável família, mau grado seu, organiza-se em tribo dominadora. O dia [do] aniversário da esposa do Marechal Deodoro tomou, nos jornais oficiosos, as proporções de um acontecimento nacional. O sr. Deodoro tem muita família, sobretudo muitos sobrinhos, a quem se atribuem muitos méritos; estes méritos porém nunca foram exaltados pela imprensa que só lhos descobriu desde que o tio reina.
E os sobrinhos do poder executivo e absoluto já não podem contar os seus novos e sinceros admiradores. Os jornais publicam os retratos dos sobrinhos do Marechal; todos os dias são oferecidos jantares, almoços, manifestações aos sobrinhos do Marechal. Nunca, em tempo de nenhum Papa, que por mais desenvolvido tivesse o sentimento da família, foram vistos em Roma mais adulados sobrinhos — nepoti santissimi, como lhes chamam os romanos. Num grande banquete, que durou longas horas, e em que o ator cômico Xisto Bahia bebeu à saúde do Marechal Pai da Pátria(11), numerosos oradores exaltaram minuciosa e entusiasticamente os méritos individuais e coletivos da família do Marechal Fonseca, que, na sua época de sacrifícios e glórias no Paraguai, jamais recebeu ovações, como as feitas agora aos drs. majores Hermes, Manoel Hermes, Percilio, e Olimpio da Fonseca. Felizmente, a influência desses parentes do ditador não parece se exercer em muito mau sentido; a intervenção deles, decisiva nos negócios públicos, tem mesmo sido às vezes em favor da moderação e da justiça. E a gratidão que lhes devem os que, graças a eles, escapam às perseguições, é um sentimento que não se tem também escondido.
O Jornal do Comércio, de 1 de fevereiro, noticia que «os empregados e subalternos da secretaria da câmara dos deputados, foram, incorporados, agradecer ao dr. Hermes da Fonseca a sua intervenção para que eles ficassem nos seus lugares».
O Marechal Deodoro mais de uma vez tem desfeito injustiças e corrigido disparates. Já nesse louvável intuito se viu obrigado a despedir o incorreto jacobino Aristides Lobo, que espontaneamente se improvisara ministro do interior na confusão de 15 de novembro. Já de outra vez, fez cassar nomeações diplomáticas feitas pelo sr. Quintino Bocaiuva que escolhia Ministros para representar o Brasil entre a reportagem necessitada e a boemia intensa que cerca aquele senhor.
Estes atos (e escolhemos dentre os fatos reveladores de boas intenções, praticados pela ditadura) mostram a desordem contraditória e fatal que está sendo no Brasil o aprendizado nacional da forma republicana. O sr. Quintino Bocaiuva declara que os jornalistas contrários ao governo incorrerão nas penas de insurreição militar: o sr. Rui Barbosa, em resposta às críticas feitas a um dos seus decretos bancários, ameaça os jornalistas com as mesmas penas(12): no Rio Grande do Sul, o jornalista Koseritz é levado à presença das autoridades e intimado a não fazer mais oposição ao governo, porque (disse-lhe o chefe de polícia) a República não podia tolerar a liberdade que havia no tempo do Império(13). É porém mais forte de que tudo isto a boa vontade do Marechal Deodoro; e as penas de insurreição ainda não foram, graças a ele, aplicadas a nenhum dos jornalistas que, pouco a pouco, vão criando coragem, passando do silêncio à observação respeitosa, da observação à timida censura, saindo assim do cauteloso retraimento a que se abrigaram — porque, diz preciosamente o Jornal do Comércio, «a liberdade de imprensa é qual a mimosa sensitiva que ao menor toque se retrai», ou «como o límpido cristal que ao mais leve sopro se empana»(14).
Não é difícil avaliar que efeito desmoralizador tem no caráter nacional este regime de compressão, que intimida, e que dá a liberdade aos bocados, só por mero favor e por generosidade pessoal. Este regime é para o povo a escola do servilismo e do rebaixamento. Para o governo, é a irresistível tentação do capricho e da vaidade—quando não seja a tentação do crime. Daí vem os fuzilamentos do Maranhão, os tormentos inflingidos aos prisioneiros(15). Daí vem esse tenente que penetra na secretaria de polícia do Paraná e, sacando da espada, espanca, a pranchadas, o chefe de polícia, ficando o criminoso impune, e sendo a vítima exonerada a exigências da oficialidade da guarnição(16).
A ditadura, quando não se notabiliza pelo crime, distingue-se pela vaidade. É o governo dando uniformes fantasiosos e teatrais ao exército; o ministro da marinha ordenando que todos os oficiais tenham os mesmos cordões de ouro dos generais(17); o governador do Rio de Janeiro viajando com pompa soberana, precedido de clarins, recebido por uma sociedade musical chamada Lira dos conspiradores, para espantar pelo fausto um país acostumado à simplicidade de D. Pedro II(18); o ministro da marinha recebendo dos reporters navais da imprensa os bordados da sua farda de almirante e regando com champagne a dádiva(19); o retrato do sr. Rui Barbosa, ministro da fazenda, estampado nos novos bilhetes de banco(20), honra que nenhum país seriamente republicano deu a nenhum cidadão vivo, e que nenhum outro estadista ousaria aceitar… Eis aí o lado cômico da ditadura,— lado cômico nunca percebido, ou antes sempre escondido, por uma certa imprensa que amarra sistematicamente adjetivos encomiásticos aos nomes dos governantes. O respeito do Americano e do Francês pelo chefe da sua nação não os obriga a dizer mais do que Mr. Harrison, ou Monsieur Carnot; no Brasil, para os reporters, os adjetivos de pequena gala são, pelo menos, venerando, ínclito, invicto e heróico.
Todas estas vaidades e todas estas exagerações pertenceriam somente ao domínio do burlesco se não revelassem um estado político lastimável, um verdadeiro retrocesso na dignidade e no decoro dos costumes políticos. Todo o desequilíbrio moral é funesto em suas consequências, embora risível nas suas formas; mas quando revelado por quem governa, é uma verdadeira calamidade nacional. Nos negócios interiores de uma nação a vaidade, o capricho, a ignorância e a boemia são sempre fatais. E que resultado não é desses elementos aplicados à solução das questões internacionais de que tanto dependem a integridade e a honra dos países?
Por desgraça do Brasil, a república militar, apenas inaugurada, quis dar uma amostra da sua diplomacia. E escolheu a grave questão de limites com a República Argentina.
Estudemos os antecedentes da questão, e vejamos o modo pelo qual ela parece ter sido resolvida sob o ponto de vista da honra e do interesse do Brasil.
II A monarquia brasileira, que na República Argentina foi tantas vezes acusada, pela cegueira popular, de ambição e de espírito dominador, mas que recebeu de homens da estatura de Mitre, de Sarmiento e outros, os mais irrecusáveis atestados de nobre desinteresse, deixou a chamada Questão de Missões para ser sujeita à decisão arbitral do presidente dos Estados Unidos. O governo do Brasil removera pois do horizonte diplomático da América do Sul a hipótese de uma guerra argentino-brasileira por motivos de limites. A questão histórica, diplomática e geográfica, destinada a ter a pacífica solução de arbitragem, tinha sido examinada a fundo por muitos publicistas brasileiros como objeto de grande e ponderado estudo. E o governo do Brasil, cônscio do seu direito (que é incontestável aos olhos de todo o mundo que aprofunde a questão), esperava tranquilo a decisão que, pela elevada imparcialidade do juiz escolhido, não podia ser senão favorável à causa brasileira.
O Governo Provisório da República não soube e não quis deixar que o tratado argentino-brasileiro, de 7 de setembro de 1888, produzisse todos os seus efeitos — isto é, não quis permitir que se realizasse o juízo arbitral.
Por que? Desconfiaria da imparcialidade do árbitro escolhido pela monarquia? Esta suposição é inadmissível para quem conhece a seriedade do governo livre da grande república americana.
Duvidaria o Governo Provisório do direito do Brasil? Seria preciso para admitir esta hipótese supor que o Governo Provisório não tinha a menor noção do litígio. Mas, ainda nesse caso, não era de simples bom senso, infinitamente preferível deixar que o Brasil se sujeitasse às contingências da decisão arbitral, do que ceder precipitadamente um vasto território, abrindo mão de parte, de grande parte, do direito que o Brasil sempre reclamou para si? Se o Governo Provisório adotou sinceramente a designação de — Provisório — para que esta ânsia inexplicável de resolver a mais delicada questão de honra da nação, a questão da integridade de seu território? Mais simples e mais patriótico seria com certeza, ainda no caso de recusa do juízo arbitral já aceito por ambos os países, esperar pela constituição definitiva do governo nacional.
Há porém em todo este extraordinário negócio de Missões, de que a Revista já se ocupou no seu número de Fevereiro, certos lados misteriosos, indefiníveis, que o tornam uma verdadeira curiosidade diplomática. A Prensa, grande diário de Buenos Aires, comentando o inesperado triunfo obtido pelo governo argentino, constatou orgulhosamente: «El Brasil se ha apresurado a terminar el arreglo definitivo de sus viejas cuestiones con esta Republica, y ha querido hacerlo en formas nuevas y extraordinarias(21).»
Novas e extraordinárias são realmente as formas diplomáticas da ditadura brasileira! É novo, por certo, e sem dúvida extraordinário, que um governo, por seu gosto e sem a dura pressão da necessidade, tenha humilhado o seu país perante o estrangeiro, sacrificado a sua honra, os interesses da sua segurança e a integridade de seu solo! E este sacrifício foi feito em condições particularmente humilhantes para o Brasil. O negociador brasileiro levou aos últimos extremos a adulação do amor próprio argentino e o esquecimento da dignidade do seu país. Foi do sr. Quintino Bocaiuva a ideia de ir ao Rio da Prata o próprio ministro dos negócios estrangeiros do Brasil para ali firmar o tratado. O público argentino apreciou devidamente a posição de inferioridade em que o Brasil assim voluntariamente se colocou. O órgão oficioso do presidente da República Argentina não deixou de acentuar o fato: «a vinda de Quintino Bocaiuva ao Prata», diz o Sud America, «adiantando-se ante o nosso governo, é uma prova muito alta de deferência que um governo presta a outro. Aos que condenam a política da atualidade, em todas as suas faces, como um desastre, insinuando abertamente que o governo tem perdido o crédito e o prestígio do país no exterior, a esses, opomos este fato, como um desmentido incontestável(22).»
Resolvido este ato de quase subserviência internacional, o sr. Bocaiuva, entusiasmado, telegrafou ao representante do Brasil em Buenos Aires anunciando que ao chegar à República Argentina «o seu primeiro abraço seria para dois velhos amigos de sua alma, para Luiz Varella e Carlos Guido, que, mais que nenhuns outros lhe tinham feito amar e admirar as glórias do povo argentino(22).» A opinião pública argentina, o governo, a imprensa, cantaram vitória; e deram a sua causa por ganha desde que souberam que o tratado ia ser feito pelo sr. Bocaiuva, por todos indicado como «o publicista brasileiro mais amigo da República Argentina(23)», como «o representante caracterizado da nova política brasileira, e o antigo amigo da República Argentina(24).» Um jornal lembrou que há alguns anos o sr. Bocaiuva, que «além de hábil político é também, como Racine e Octave Feuillet, um excelente moralista(25)», fizera num teatro do Rio de Janeiro uma conferência sobre a mulher argentina. Segundo esse jornal, foi ruidoso o efeito dessa conferência: — «Quien es este hombre que nos viene a decir novedades tan buenas?» O jornal argentino diz que esta era a pergunta feita a si mesmos pelos aristocratas brasileiros «acostumbrados a vivir entre las fieras como Nabucodonosor y que solo a partir de aquel momento conocieron que la virtud ne era simplemente una palabra(26).»
Assim, com desprezo mais ou menos franco, falavam do Brasil os jornais argentinos, ao ocuparem-se do enviado que vinha a caminho de Buenos Aires.
Enquanto esta era a linguagem da imprensa platina, no Rio de Janeiro o ministro democrata mandava fazer grandes obras a bordo do encouraçado Riachuelo, para acomodar a sua família, os seus genros, amigos, repórteres, que no meio de grande fausto o deviam acompanhar a Buenos Aires, formando-lhe um séquito régio — régio não pelo brilhantismo dos personagens, mas pelas grandes somas que ao Tesouro brasileiro custou esta embaixada rastaquouère! Assim se iniciava a cômica e revoltante odisseia, cheia de chato cabotinismo, abundante em desfrutáveis incidentes, aliás bem tristes quando se pensa que aquilo pretendia representar o Brasil. A viagem custou ao país avultadíssima quantia: e não foi senão uma sucessão de atos de inútil adulação aos argentinos por parte do ministro brasileiro, e de mal contidos sarcasmos escapos à sinceridade argentina através do ruído das festas. O Rio de Janeiro assistiu com triste indiferença à partida da estranha expedição; e compreendeu logo que de tal aventura não sairiam ilesos nem o prestígio nem o interesse do país. O povo brasileiro vira muitas vezes modestos e pobres homens de Estado partirem para o Rio da Prata, como simples passageiros, em navios mercantes; e sabia que nessas regiões, lutando contra seculares preconceitos, esses homens fizeram prevalecer sempre a influência do Brasil, preponderar a sua política, consagrando em tratados a glória adquirida pelas armas, e criando para a diplomacia brasileira uma legenda de habilidade e de energia. Bem diversos eram esses enviados do Brasil deste pedantesco passageiro do Riachuelo! Os enviados de Roma, que intimaram a Pirro a retirada da Itália e que passaram à África desafiando Cartago, trajavam lã grosseira e eram pobres: mas iam vestidos de púrpura e de sedas, cobertos de ouro, e em tudo magnificentes, os eunucos de Bizâncio, que iam às fronteiras levar aos bárbaros o duro tributo com que a grandeza romana, ao extinguir-se, comprava a paz ao inimigo.
Em Montevidéu, a feição anti-patriótica e espetaculosa do regabofe diplomático acentuou-se ainda mais. Figurou logo na viagem do sr. Bocaiuva o toureador Mazzantini: e a tauromaquia veio assim ajudar a diplomacia. Assistiam oficialmente à tourada o sr. Bocaiuva e o plenipotenciário argentino. «Mazzantini ofereceu a morte do terceiro touro aos ministros Bocaiuva e Zeballos, brindando pela felicidade do Brasil e da República Argentina e pela união das repúblicas sul-americanas.» A espada de Mazzantini impedirá pois a história de dizer que não se derramou sangue pela questão de limites entre o Brasil e a República Argentina. Houve o sangue de um boi. E não foi pois tão incruentamente, como se afirmou, que esse país pelo tratado Bocaiuva ganhou sobre o Brasil mais de quinhentas léguas quadradas. O jornal argentino conta ainda que o enviado brasileiro mandou chamar Mazzantini ao seu camarote, e, diante do público entusiasmado, desprendeu do colete a custosa cadeia e o relógio de ouro, e entregou essas jóias ao toureador. «El doctor Zeballos», continua o jornal, «quedó muy impresionado por lo del toro y por lo del regalo(27)!»
De outra vez, uma comissão de jornalistas foi levar ao sr. Bocaiuva o distintivo dos membros da imprensa de Montevidéu (?). Este distintivo é trazido, segundo parece, na botoeira da casaca. Um jornal uruguaio conta que a pessoa encarregada de colocar a insígnia ao peito do ministro teve de pedir um canivete para abrir a casa do botão, e que o dr. Alonso Criado, que se achava presente, disse, dirigindo-se ao mesmo sr. Q. Bocaiuva: «Ojalá sea esta la uníca herida que se le infiera al notable republicano fluminense(28)!»
A negociação entabolada em Montevidéu teve sempre intermédios desta ordem. Enquanto ela durava, em Buenos Aires faziam-se preparativos para a recepção. O presidente da República Argentina, porém, não julgou dever esperar o extraordinário representante do Brasil; e ostensivamente partiu para a sua casa de campo na província de Córdova onde o sr. Bocaiuva, que em Buenos Aires não encontrou o chefe do Estado, teve de o ir procurar. O jornal oficioso do presidente não deixou de consignar o fato com visível satisfação. Depois de dar o programa das festas preparadas em honra do sr. Quintino Bocaiuva, disse a folha oficiosa: «El presidente permanecerá en su residência de campo Las Rosas, sin venir a esta ciudad. Se sabe ya que el dr. Quintino Bocaiuva estará solo en Buenos Aires hasta el viernes próximo, pasando en seguida a Cordoba, a visitar al Señor Presidente de la República(29).»
Na véspera, outro jornal dizia que o sr. Quintino Bocaiuva, como membro do Governo Provisório que estava organizando o Brasil republicano, fazia bem em visitar a República Argentina para «aprender como Sesostris, como Solon, como Licurgo, como Triboniano, etc., etc., viajando por los paises más adelantados en la ciência del buen gobierno(30).» Estas vaidosas e disparatadas afirmações eram um prematuro comentário ao discurso pronunciado dias depois pelo sr. Bocaiuva que não trepidou em pronunciar estas indecorosas palavras: «La gran revolucion efectuada por el pueblo del Brasil, ha sido sin duda inspirada por el espectaculo de sus pueblos libres vecinos. Vosotros, pues habeis prestado vuestra colaboracion al triunfo de la républica. Os lo agradezco y os saludo(31)»
Poderíamos acrescentar a este exemplo muitos outros que todos serviriam para provar até que ponto chegou o servilismo do sr. Bocaiuva.
Na sua sofreguidão de entregar aos argentinos parte do território brasileiro, o sr. Bocaiuva, em Montevidéu, apressou-se em assinar o tratado, sem esperar sequer a chegada àquela cidade do coronel brasileiro Dionisio Cerqueira, membro informante que tinha explorado o território em litígio, e que se achava em viagem de Missiones para Montevidéu(32)!
Que extraordinário tratado foi esse, assinado entre os folguedos de uma viagem burlesca, entre atos de indigna leviandade, — e depois guardado em tão profundo silêncio?
Bastaria registrar a explosão de contentamento do governo argentino, as festas feitas ao enviado brasileiro, os aplausos dados aos diplomatas argentinos srs. Moreno e Zeballos, para um observador concluir que esse tratado foi forçosamente favorável à República Argentina.
O País, órgão do sr. Quintino Bocaiuva, disse: «Pelo tratado ficam salvas as povoações brasileiras existentes na proximidade da linha de demarcação de fronteira, sendo, ao mesmo tempo respeitada a posse dos povoadores que por acaso fiquem de um ou de outro lado da linha. Segundo nos informam, os rios Chopim e Chapecó pertencerão ao Brasil em todo o seu curso e igualmento toda o território do município de Palmas no Estado do Paraná.»
O Jornal do Comércio, de 8 de fevereiro, diz:
«O tratado recentemente assinado em Montevidéu, segundo as informações vagas que até agora têm chegado ao conhecimento do público, procurou resolver a antiga pendência, dividindo o território litigioso em duas partes por meio de uma linha quase reta, traçada da foz do Chopim no Iguaçu até à foz do Chapecó no Uruguai, abrangendo a parte Ocidental ou argentina quinhentas léguas, e a parte oriental ou brasileira trezentas léguas, no dizer da imprensa de Buenos Aires.»

O mapa do território litigioso que juntamos a este artigo mostra bem claramente a extensão e a importância do território que a República Brasileira cedeu à República Argentina. Não podemos acreditar que o governo brasileiro fosse, pelas ameaças do seu vizinho, acuado e obrigado a ceder, segundo disse o Times, que afirmou ter sido o governo do Rio de Janeiro put in a corner. Esta é todavia a impressão do estrangeiro: e é a versão que os Argentinos têm procurado fazer acreditar na Europa, como já em novembro tinham dito, antes do sr. Bocaiuva, que a revolução brasileira era obra deles. O mais provável porém é que esta cessão de um território fértil, o estabelecimento dessa linha de fronteira tão perigosa para a segurança do Brasil, foi um ato de precipitação inconsciente.
Pelo mapa vê-se que o tratado Bocaiuva prolongou o território argentino pelo interior do Brasil, deu ao exigente vizinho do Brasil o curso inteiro do Santo Antônio Guaçu e do Peperi-Guaçu, rios sempre considerados fronteira do Brasil, determinados como tais pelo tratado de 1750, assim confirmados pela comissão hispano-portuguesa de 1759, e solenemente aceitos como tais pela República Argentina pelo tratado de 14 de dezembro de 1857, que foi sujeito à legislatura argentina, por ela aprovado e retificado pelo Brasil! Este território onde os habitantes de Curitiba penetraram desde tempos imemoriais, onde se tem estabelecido fazendas de cultura e de criações pertencentes a Brasileiros, estas margens do Peperi-Guaçu junto ao qual em 1759 os comissários de Portugal e Espanha acharam vestígios de roças atribuídas aos Paulistas, este território foi espontaneamente cedido pelo sr. Bocaiuva, entre o ruído das festas de Montevidéu e Buenos Aires!
Mas a terra do Brasil pouco parece valer para este faustuoso diplomata da democracia brasileira, que gasta tantos contos numa viagem, distribui relógios de ouro a toureadores, e presenteia com centenares de léguas quadradas do solo pátrio os seus amigos estrangeiros.
O Brasil, cônscio do seu direito, nunca procurou impedir o justo desenvolvimento territorial da República Argentina. Por intervenção do Brasil obteve a Argentina na margem direita do Paraguai o Chaco e o mesmo território de Missões. E quando o governo de Buenos Aires regulou as suas questões de limites com o Chile, em 1881, teria bastado uma palavra do Brasil para impedir que a República Argentina ficasse com toda a Patagônia.
Dirão os defensores do sr. Bocaiuva que o território de Missiones é um território deserto e sem valor. Se essa fosse a verdade porque teriam os argentinos envidado, nestes últimos anos, tantos esforços para conservar esse território? Até há bem poucos anos todas as cartas argentinas, cartas oficiais, consideravam como limites da República os limites do território reclamado pelo Brasil por direito próprio que lhe provinha dos tratados e da ocupação real. E a esta ocupação não se pode dar o caráter de simples incursões de invasores brasileiros. O próprio sr. Quintino Bocaiuva, a 25 de janeiro, telegrafou para o seu jornal, o País: «O acordo de limites foi assinado hoje. Serão salvaguardadas todas as povoações brasileiras e os direitos de propriedade…. A satisfação é geral.» E devia realmente ser geral a satisfação na República Argentina; esse país, graças ao sr. Bocaiuva, ganhava um território que ele não considerava seu. É verdade que em 1882 o Congresso argentino decretou a nacionalização de Território de Missões até então pertencente a Corrientes, aí criou departamentos e lhes assinalou limites ultrapassando as fronteiras brasileiras, e chegou mesmo ao ponto de anunciar que ia ser vendido em lotes parte do território que o Brasil considerava seu; mas este ato de audácia gorou, ficou inútil, em vista das enérgicas reclamações do Brasil.
O território de Missões, segundo o tratado do sr. Bocaiuva, é uma verdadeira cunha entrando pelo Brasil a dentro. O conhecido escritor chileno sr. Vicuña Mackenna, tratando da situação da América do Sul, disse uma vez que o Brasil era um animal tendo cravado nas carnes um dardo penetrante, que era o território de Missões. O sr. Bocaiuva, trazendo a fronteira argentina mais para dentro do Brasil, enterrou ainda mais esse dardo. Pelo tratado do sr. Bocaiuva, o território argentino avança para o Brasil três lados de um quadrilátero: ao norte o Iguaçu, ao sul o Uruguai, ao oriente uma fronteira aberta por onde um ataque é facílimo desde que o caminho de ferro argentino do Nordeste, hoje em construção, chegue a Missiones, e que os argentinos se aproveitem da navegação do Uruguai e do Iguaçu. Com esses meios de transporte, uma concentração de tropas em Missiones é negócio de poucos dias e, pela fronteira aberta pelo sr. Quintino Bocaiuva, os argentinos entram de plano no Brasil, invadindo três Estados, cortando as comunicações entre eles, e ferindo em pleno coração o Brasil meridional. O território argentino, agora tão avançado para o oriente, dificulta na paz e impossibilita na guerra a comunicação entre o resto do Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul. Abandonada a fronteira do Santo Antônio e do Peperi-Guaçu, única defensável, na opinião dos competentes, a República Argentina acha-se possuidora e senhora de um grande pedaço de terra sempre considerada brasileira, e, segundo observa o escritor o sr. Max Leclerc, do Journal des Débats, que há pouco visitou o Brasil, a província do Rio Grande do Sul não se acha mais aderente ao Brasil senão pela estreita faixa de terra da província de Santa Catarina, que o tratado Bocaiuva veio estreitar ainda mais. O Rio Grande, segundo o escritor francês, é um fruto maduro que todos temem venha a cair, e o tratado Bocaiuva deu-lhe ainda um talho no pedúnculo enfraquecido(33).

Vê-se isto claramente nesta carta territorial do grande país americano que tão soberbamente era chamado outrora a América Portuguesa e que se estende do norte do Equador até perto da embocadura do Prata, vasta extensão de território cercada pelo mar e pelos povos de descendência espanhola. Pequenas secções de território ao norte mostram as parcelas de solo que alguns vizinhos disputam; e, para o sul, está indicado o ponto fraco, o campo onde a República Argentina acaba de ganhar tão assinalada vitória.
Este extraordinário tratado, tão festejado na República Argentina, foi recebido no Brasil com a maior desconfiança. Os argentinos chegaram a pasmar diante da atitude tão inesperada da República Brasileira: «La sorpresa no podia sernos más agradable. La nueva republica coronaba con un hecho maravilloso el gran suceso del 15 de noviembro(34).
Mas foi sobretudo a oficialidade do exército que se impressionou patrioticamente com a ideia de que, estando o Brasil inteiramente sujeito à espada de um general, e sendo o governo militar, o território brasileiro, zelosamente conservado intacto durante sessenta e oito anos de governo civil, fosse cedido em parte quando governa o exército cuja missão única é a defesa do solo da pátria. Esta inquietação do exército era bem natural, porque a história há de dizer que o exército no Brasil era tudo, tudo podia, quando se efetuou uma cessão de território brasileiro! O sr. Quintino Bocaiuva desaparecerá em breve, perdido na grande perspectiva da história; mas a responsabilidade do exército onipotente, essa, ficará!
Alguns oficiais brasileiros fundaram um jornal, o Cruzeiro(35) e pediram ao Governo Provisório que revelasse a verdade a respeito do negócio das Missões. Diziam eles:
«Pelas notícias que nos chegam, o nosso território está diminuído, a nossa pátria amesquinhada, a integridade do solo esfacelada, as nossas fronteiras descobertas, o Brasil invadido.
É por isso que enquanto os argentinos batem palmas e fazem festas estrondosas pela conclusão do tratado, o espírito brasileiro sente-se acabrunhado e entristecido.
Em justa impaciência o sangue patriota referve indignado, esperando que a luz se faça sobre os acontecimentos.
Pela honra da pátria, pelos brios do ministério, em nome da nação, o povo quer saber ao certo a que proporções se reduz a questão das Missões.
Se é uma negociação diplomática, ou uma negociata particular.
Se é uma questão de honra nacional, ou um arranjo de amigos.
Se é uma concessão de justiça, ou uma entrega clandestina.
Se é uma política larga que granjeia amigos, ou uma armadilha que nos trará futuras guerras.
Se é um tratado de aliança franca entre irmãos de hoje, ou um ajuste secreto entre republicanos de ontem.
O país quer saber se em tudo isto há luz ou trevas.
É preciso que o governo fale. Assim o exigem os brios nacionais e a dignidade do representante brasileiro.»
Depois desta intimativa que o patriotismo justifica, era natural que o Governo Provisório dissesse alguma coisa: — e, efetivamente, um longo artigo do Diário Oficial de 18 de fevereiro informou o público de que o tratado seria conservado secreto até à instalação da Assembleia Constituinte, e que toda a discussão do assunto era prematura !
De onde vem reserva tão singular? O Brasil não estava acostumado a este sistema. No tempo da monarquia, os seus tratados de limites, foram todos publicados apenas celebrados, e sujeitos à mais ampla discussão. Se o tratado não ofende o pundonor brasileiro porque conservá-lo secreto? Se a honra, se os interesses do Brasil ficaram sacrificados, para que correu pressuroso o governo a celebrar tal tratado, sem esperar a constituição definitiva do governo nacional?
O liberalismo americano, tão apregoado pelo Governo Provisório, não é um sentimento compatível com todas estas reservas e artifícios, já caídos em desuso entre as velhas monarquias europeias. A República brasileira deve estar bastante consolidada no interior para não temer as explosões de um descontentamento nacional. Se o povo só tem motivos para rejubilar com o tratado, para que furtar ao povo o conhecimento pronto da felicidade que ele deve ao sr. Bocaiuva? Para que adiar as bênçãos que a nação tem de lançar sobre a cabeça daquele cidadão, aquela mesma cabeça com que (disse ele num discurso em Buenos Aires) ficava garantida a execução do tratado?
Este silêncio do governo, esta sonegação da verdade que a nação tem o direito de saber, é a prova de que nada de bom tem o Brasil a esperar do tratado secreto. O que hoje se sabe desse documento é o que dele quiseram revelar a imprensa oficiosa de Buenos Aires, e o próprio sr. Bocaiuva por meio do seu jornal O País.
Estas revelações, de certo muito atenuadas e apresentadas de conformidade com os interesses dos declarantes, só por si dão, como vimos, uma ideia já bastante precisa da extensão do sacrifício do Brasil. Por ora, fica suspenso o juízo dos brasileiros quanto às outras cláusulas do tratado.
O campo está pois livre a todas as suposições: Teria o Governo do Brasil obtido promessa de uma intervenção argentina em caso de revolta no Rio Grande do Sul? Teria consentido no desaparecimento do Paraguai e na conquista de Montevidéu, sonho dourado dos patriotas argentinos? Ou teria apenas lançado as bases de um novo e verdadeiro Zollwerein da tirania, obtendo, em troca de igual favor, que aos deportados e banidos do Brasil fosse interdito o Rio da Prata?
Tudo é permitido supor nesse regime de mistério com que a República brasileira pretende estar praticando a máxima positivista «Viver às claras». Tudo é de esperar do sistema de opressão e de irresponsabilidade que essa República, seguindo uma política de eras tirânicas, inaugura agora no Brasil.
Os jornais do Rio da Prata e do Rio de Janeiro revelam-nos ainda um lado gravíssimo da embaixada do sr. Quintino Bocaiuva. «O embaixador brasileiro», diz um telegrama de Buenos Aires para o Jornal do Comércio de 8 de fevereiro, «submeteu ao presidente da república um projeto de aliança pacífica entre o Brasil e a República Argentina.» Num dos discursos do sr. Bocaiuva em Buenos Aires, da janela de um hotel ou de um palco de teatro, lê-se esta frase: «Se o sangue brasileiro tiver de misturar-se ao sangue argentino, é porque ele será derramado em comum, em defesa da mesma causa.»
Por aquele telegrama e por essa declaração vê-se que o Governo Provisório, por meio do seu representante extraordinário, mostrou a intenção de ligar o Brasil à República Argentina numa estreita aliança. Não se limitou a ceder o território; o governo brasileiro quer ainda que o Brasil vá talvez derramar o sangue de seus filhos e gastar o dinheiro do seu tesouro em favor da República Argentina. Uma aliança entre os dois países é só em favor da República Argentina. O Brasil não tem questões com o Uruguai, nem com o Paraguai, nem com o Peru ou com a Bolívia. Em compensação, a República Argentina tem no seu futuro probabilidades de grandes lutas.
Com o Chile ela terá, mais dia menos dia, de assinalar positivamente os limites designados em 1881. Pelo tratado chileno-argentino, destinado a vigorar somente durante dez anos, a fronteira entre os dois países passará pelos cumes mais elevados da cordilheira dos Andes, e no sul da Patagônia e na Terra do Fogo será estabelecida por duas linhas astronômicas, uma em latitude e outra em longitude, que não estão ainda assinaladas na sua extensão.
Ora a ciência ainda não determinou quais os pontos mais elevados dos Andes; mas todos sabem que eles dominam numerosos vales fertilíssimos cuja propriedade pode ser duvidosa e terá de ser disputada por ambos os países. O sul da Patagônia e a Terra do Fogo, pelas explorações que aí se têm feito, também se anunciam como regiões mineiras de grande futuro. Nos Andes tem havido já sangrentos conflitos entre chilenos e argentinos.
O Chile, em violação do seu tratado, fortificou em parte, e está pronto a fortificar ainda mais, o estreito de Magalhães. Há entre os dois países grande antipatia; aos Argentinos doeram imenso as vitórias dos Chilenos contra o Peru. Eis aí plausíveis motivos para possibilidade de um conflito entre o Chile e a República Argentina. Se vingar a política do sr. Bocaiuva, o Brasil terá, quem sabe se de um momento para outro? De pegar em armas, aguentar nos passes da cordilheira o embate da fúria chilena, guiada pela perícia e pela disciplina exemplar dos oficiais chilenos que desdenham e não querem para si as glórias dos pronunciamientos; enquanto a esquadra brasileira terá de guardar as costas da República Argentina, ou terá de ir, pelos tempestuosos mares do sul, ao encontro dos poderosos encouraçados do Chile.
A ninguém escapa a noção da injustiça e dos perigos desta guerra contra uma nação amiga, que, dispondo de grandes recursos (e que sendo, depois da Revolução do Brasil, o governo sul-americano que de mais crédito goza na Europa), poderá, graças aos seus admiráveis soldados, fazer valer os seus direitos.
O governo chileno não foi indiferente ao que se disse e ao que se fez em Buenos Aires. Pela linguagem da imprensa chilena, coincidindo com a retirada do ministro do Chile no Rio de Janeiro, vê-se que aquele governo inteligente e forte percebeu o perigo — mas não ficou intimidado.
Isto em quanto ao Chile. Pelo lado da Bolívia um conflito com a Argentina é sempre iminente. Divisões mal traçadas; uma nação mediterrânea, privada de comunicação direta com o mundo civilizado, aspirando a ter uma saída; e essa nação tendo por vizinho um povo invasor que cresce pela imigração, que desenvolve rapidamente os seus meios de ação — eis suficientes motivos de guerra(36).
O Paraguai e o Uruguai, esses tremem naturalmente diante da República Argentina. A constante aspiração dos homens públicos deste país, a preocupação revelada por seus escritores, é a de formar de novo o antigo vice-reinado de Buenos Aires, de criar uma nacionalidade que faça frente ao Brasil e que, crescendo em importância, deixe sempre o Brasil em posição secundária no continente. Os dois países ameaçados compreendem o seu perigo; e a sua situação tem estado várias vezes seriamente arriscada.
O que acima dizemos, pode ser resumido deste modo:
O Brasil não tem questões perigosas a temer desde que se diz resolvida a questão de Missiones;
A República Argentina, ainda depois de liquidadas suas contas com o Brasil, tem diante de si várias probabilidades de guerras;
E, apesar disso, a República Brasileira vai apressadamente a Buenos Aires propor uma aliança que obrigará talvez o Brasil aos sacrifícios e aos riscos de lutas com que ele só tem a perder!
Eis, em breves traços, o que em cinco meses tem feito a diplomacia da ditadura.
Essa ditadura foi reconhecida pelos países americanos, justamente na razão inversa da importância e da seriedade dos países. A última nação americana a reconhecer o governo militar foram os Estados Unidos. A imprensa daquele grande país, onde a lei impera, onde se respira a liberdade, onde o povo governa, estranhou a prolongação inútil do arbitrário ditatorial, reprovou as medidas de banimento, as prisões, as deportações, e admirou-se do menospreço em que era tida a representação popular pelo governo que se apoderou do Brasil. A República Francesa, pelo órgão do seu ministro dos negócios estrangeiros sr. Spuller, declarara na câmara francesa que o governo só reconheceria a república brasileira quando esta estivesse constituída pelos representantes eleitos da nação(37). E se os Estados Unidos abriram uma exceção a esta atitude que foi a de todos os grandes estados — é que muito bons motivos para isso tiveram o seu governo e o sagacíssimo sr. Blaine, secretário de Estado. O governo americano sempre reconheceu os governos de fato; basta dizer que foi o único país do mundo que reconheceu o despotismo de D. Miguel em Portugal. Mas aqui a razão foi outra.
O reconhecimento da república brasileira só ficou resolvido a 31 de janeiro de 1890. Poucos dias antes, os jornais norte-americanos publicavam extratos do relatório aprovado pelos representantes do congresso pan-americano reunido em Washington. A maioria dos representantes dos diferentes países, apesar de algumas reservas, admitira a conveniência de um ensaio de reciprocidade aduaneira entre os países americanos, para preparar, no futuro, o estabelecimento do livre câmbio americano.
Os representantes do Brasil votaram com a maioria. Os representantes do Chile e da República Argentina, esses, separaram-se dela ousadamente, e votaram pela repulsa in limine de toda a tentativa de acordo que, no fundo, não poderia dar outro resultado senão estabelecer, para sempre, a suserania econômica e comercial dos Estados Unidos sobre toda a América, e romper quase que totalmente as relações econômicas e comerciais com a Europa.
O governo chileno, assim como o governo argentino, sabem que a fraternidade americana é uma bela coisa; mas não se esquecem de que a civilização lhes vai da Europa, de onde argentinos e chilenos incessantemente recebem braços e capitais que não podem dispensar para o seu engrandecimento e riqueza.
Os representantes do Brasil em Washington separaram-se do Chile e da República Argentina, dois países que acabam de mostrar quanto prezam a sua autonomia, quão viva têm a intuição dos seus destinos: — e com que fim? com o fim de obter dos Estados Unidos o reconhecimento tardio do Governo Provisório! Outra triste obra da diplomacia ditatorial.
III Por mera solidariedade humana, pelo simples exercício de pensar, a Europa teria o direito de estudar a revolução brasileira, ainda que no Brasil não vivessem tantos milhares de Europeus, ainda que capitais tão avultados, saídos das economias europeias não estivessem empregados naquele país. A nação brasileira, promovendo a emigração europeia para o seu solo, solicitando periodicamente novos auxílios monetários da Europa, não pode estranhar que a Europa queira examinar a condição feita a seus filhos, o destino e as garantias do seu dinheiro.
E o que pode a Europa esperar de uma ditadura criada pela revolta de uma classe armada, entronizada manifestamente pela indisciplina do exército e da marinha?
A ditadura brasileira nasceu de um pronunciamiento; e a longa experiência de todo este século tem mostrado o que são as finanças dos países de pronunciamientos. Um escritor define o pronunciamiento da seguinte forma: «O pronunciamiento é um movimento militar que, quando bem sucedido, faz avançar de um posto todos os militares que nele tomam parte.» E não faz mais nada de útil.
No Brasil, ainda que os decretos do Governo Provisório não começassem todos com a forma: «O generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório constituído pelo Exército e pela Armada, etc., etc.»; ainda que o povo não tivesse assistido bestificado ao movimento, puramente militar(38) — as numerosas promoções publicadas dias depois viriam provar que a revolução do Brasil foi um pronunciamiento. O sobressalto dos capitalistas foi por isso naturalíssimo; e a experiência posterior justificou plenamente as apreensões primitivas.
O crédito é a confiança: e não podendo haver confiança num regime de surpresas e de violências, o crédito brasileiro caiu. A ditadura que no interior destruiu a liberdade, e no exterior humilhou o país perante a República Argentina, desacreditou o Brasil na Europa financeiramente.
Os capitalistas europeus guardarão triste lembrança da revolução do dia 15! As empresas brasileiras já quase lançadas nos mercados da Europa, ficaram indefinidamente adiadas; os empréstimos de duas províncias(39), empréstimos resolvidos e aceites antes da revolução, fracassaram desastrosamente; e o crédito de 150 milhões de francos, aberto em Paris ao governo da monarquia por alguns banqueiros franceses, foi imediatamente cancelado. Por que?
Os capitalistas sabem o que querem. A ditadura fez-lhes promessas; mas a ditadura seguiu uma vida de arbítrio sem limite, caracterizada pelos medidas mais contraditórias, pelo esbanjamento de dinheiro, pelo prurido de legislar e de reformar, pelo sistema de sobressaltar os interesses conservadores da sociedade.
A confiança desapareceu, e o descrédito foi-se alargando.
Os decretos sucedem-se aos decretos; e todos eles extensos, escritos com precipitação revelada na incorreção da língua e na confusão do método, nada estatuem de durável e só desacreditam a inteligência dos novos legisladores brasileiros, tão inferiores aos antigos. Nos decretos bancários do sr. Rui Barbosa, que se contradizem e tudo confundem, até há erros de aritmética! Ora o capital é cauteloso e prudente. É natural que ele não corra a entregar-se ao sr. Rui Barbosa, que muito divertiu a Europa financeira com os seus milhões e milhões de contos de papel, subscritos em quatro horas, conforme esse financeiro da ditadura se apressou em anunciar pelo telégrafo. Os milhões eram fantásticos, e a particularidade das quatro horas inteiramente imaginária. A verdade é que os milhões do sr. Barbosa não tinham cotação na praça do Rio de Janeiro, e que indivíduos para quem o jantar é cada dia um difícil problema financeiro (até o servente do escritório de advogado do sr. Barbosa!), se apresentaram como subscritores de milhares de ações.
O crédito do Brasil sofre gravemente com estas notícias. O câmbio, baixando, diminui os lucros do comércio estrangeiro, e das empresas industriais e comerciais estabelecidas no Brasil com capital estrangeiro. A cotação dos fundos brasileiros baixou consideravelmente; e eles já não são aceites em caução nos bancos europeus, que, sob a garantia deles, não abrem sequer uma conta corrente. A depreciação dos fundos do governo brasileiro em Londres chega certamente a 70.000 mil contos, sete milhões esterlinos perdidos para o capitalista, que assim vê a rápida diminuição do valor de sua propriedade.
A tabela seguinte demonstra a depreciação dos fundos brasileiros:

Os outros fundos brasileiros, por uma natural dependência do crédito geral do país e da desconfiança que o seu governo inspira, baixaram proporcionalmente. Os fundos brasileiros de toda natureza, cotados na praça de Londres, pelas cotações dos primeiros dias de novembro do ano passado, valiam £90.772:046, e pela cotação mínima a que chegaram depois do estabelecimento da ditadura vieram a valer apenas £75.071:430, isto é, perderam £15.700:616, que representam perto de cento e sessenta mil contos (moeda brasileira) de depreciação, de prejuízo real causado aos capitalistas pelo descrédito que às finanças do Brasil traz a ditadura militar(40).
Cremos não errar atribuindo essa depreciação somente à aversão que a ditadura irresponsável e absoluta inspira a todos os mercados que dispõem de capitais, e que desejam empregá-los com segurança e vantagem nos países estrangeiros. Os recursos materiais do Brasil não diminuíram depois de 15 de novembro; o solo fértil não pode ser esterilizado por meio de decretos por mais errados que estes sejam; o trabalho nacional não ficou paralisado; as sementes germinam; as árvores dão frutos; a chuva cai; tudo quanto é preciso para a produção crescente da riqueza continua a existir, apesar da ditadura; e no entanto dá-se o inegável e desastroso fenômeno da diminuição do crédito brasileiro!
A razão é que o crédito é a confiança — e que ninguém confia no regime do arbitrário.
IV No momento em que escrevemos estas linhas lemos um telegrama do Rio de Janeiro, transmitido pela Agência Reuter, dizendo que tropas brasileiras, que receberam ordens de partir para o Sul, recusaram obedecer, e que o Governo Provisório teve de revogar a sua ordem! Este telegrama vai ser decerto desmentido amanhã pelo Governo Provisório: mas não será talvez a primeira ocasião em que alguém minta desmentindo.
Ora a ditadura, se é lógica, não tem o menor direito de estranhar o procedimento da tropa. O ministro da guerra, o sr. Benjamin Constant, não foi, no Brasil, o inventor da teoria de que o exército tem o direito de desobedecer e até o de mudar o governo?
E na prática não deu ele ao soldado o exemplo de 15 de novembro? O que era lícito ontem e até louvável há de ser lícito hoje e amanhã. O Governo Provisório exige dos oficiais solenes compromissos e palavras de honra que os prendam à disciplina e à obediência. Mas de que podem valer para o sr. Benjamin Constant todos esses protestos? Não foi ele quem ensinou à mocidade militar o perjúrio como uma virtude, aconselhando-a violar os seus juramentos? A doutrina tem hoje a autoridade de um mestre; os soldados têm o exemplo dos seus chefes.
O povo brasileiro esse é que não tem que intervir. Excluído do governo, não tem a responsabilidade de coisa alguma. Ele só tem a missão de pagar as despesas. De tempos a tempos ouve algum sarcasmo que lhe atiram os militares e os jacobinos: é o sr. Arístides Lobo dizendo que o povo é um povo bestificado; é o País, jornal do sr. Bocaiuva, dizendo que a 15 de novembro, o povo aplaudiu «porque viu que aplaudiam, e depois com a sua apatia arrastou-se até à casa de sua residência, onde a medo comentou o desmoronamento da monarquia, sem compreender a estupenda evolução da sua pátria»(41); é finalmente o sr. Benjamin Constant, atirando também a sua injúria ao povo. Num banquete oferecido ao ministro demissionário sr. Demétrio Ribeiro («homenagem, disse o País, que se traduziu pelo presunto e pelo vinho Champagne, reunião de amigos em que foram improvisados muitos discursos decorados»)(42), o sr. Benjamin Constant tomou a palavra, e depois de afirmar que o exército não quer a ditadura, disse ao povo: — «O povo que não seja ingrato nem ambicioso; reconheça o bem que se lhe fez e não procure morder a mão que o amparou!»(43). Fala quase como um Czar este ministro da guerra, o mesmo que foi bastante vaidoso e bastante ignorante das conveniências internacionais para dirigir um telegrama de exortação republicana ao sr. Latino Coelho, telegrama em que, referindo-se ao exército da nação brasileira, o sr. Benjamin Constant dizia: O MEU EXÉRCITO… Mas disse mais nesse banquete o ministro da guerra: «Não dependo de ninguém, afirmo-o com todo o orgulho da minha pobreza(44). Não dependo do governo, não dependo do exército, não dependo da armada, não dependo do povo, porque nada quero para mim. Abandonarei todas as posições oficiais, todos os proventos que porventura delas possam advir; nada quero da República como nada quis da Monarquia»(45)
Quem lê esta linguagem parece que está diante da mais pura abnegação. Vejamos:
O sr. Benjamin Constant, que, sendo militar não depende do exército e, sendo brasileiro, se coloca acima dos seus compatriotas — disse nada querer da República. É falso. Quis o lugar de ministro da guerra com poder absoluto, fazendo parte de um governo ditatorial; quis um ordenado duplo do que tinham os ministros do Imperador; sendo um militar sedentário, havendo apenas feito nos acampamentos do Paraguai uma aparição incruenta que teve a rapidez mas não o brilho do relâmpago, o sr. Benjamin Constant quis logo da República uma promoção; e pensam que foi uma promoção regular para o seu posto imediato? Não; o tenente-coronel Benjamin Constant, o mais pacato dos tenentes-coronéis, foi promovido por alguns oficiais, não a coronel, mas a brigadeiro, por ocasião da cena da aclamação do generalíssimo Deodoro da Fonseca, em que o delírio foi grande bastante para, depois de aclamado um generalíssimo, fazer-se ainda um brigadeiro com o resto do entusiasmo! O sr. Benjamin Constant declarou que não podia recusar. Por que? O sr. ministro perdeu uma bela ocasião de se mostrar independente, — uma bela ocasião de não preterir os coronéis do exército, seus colegas e subordinados mais antigos, com serviços de guerra, muitos deles feridos, e tendo nas batalhas aguentado um fogo mais perigoso que o do entusiasmo popular ante o qual sucumbiram a modéstia e a independência do sr. Benjamin Constant. O que sucederia ao sr. ministro se recusasse? Seria assassinado, banido, deportado? Não era provável. A República é o regime da liberdade: e um cidadão, um ministro, e um ministro tão vangloriosamente independente, não pode ser obrigado a sofrer violência desta ordem. E muito menos deve depois esse ministro pecar contra a lógica, estranhando que dois regimentos no Rio Grande do Sul aclamem também brigadeiros os seus coronéis.
Disse mais o orador: — «Nada quis da monarquia!!!…» Da monarquia, e da preferência que o Imperador tinha por todo o homem que entendia ou pretendia entender de ciência, o sr. Benjamin Constant recebeu os mais assinalados favores, rendosas comissões, etc. Os numerosos empregos, que ele acumulava, eram, entre outros, o de professor da Escola militar, diretor da Escola Normal, diretor do Asilo dos Meninos Cegos, casa em que a monarquia o alojou e onde ele conspirou contra a monarquia, contra o Imperador com quem pedanteava a miúdo, e contra a Família Imperial que, segundo consta, o encarregara até de parte da instrução dos príncipes.
É forçoso confessar que este ministro tem um singular sistema de nada querer dos regimes políticos que derruba e dos que ajuda a levantar! O que faria o sr. Benjamin Constant se fosse ambicioso? Os antigos militares, ministros da guerra da monarquia, os Caxias, os Osório, os Porto Alegre, elevados ao cargo de ministros pela confiança do parlamento, esses eram uns ambiciosos vulgares. Ambicionavam com efeito cumprir com fidelidade os seus juramentos e cobrir-se de glória nos campos de batalha.
Tomando a triste tarefa de escrever na Revista os fastos da ditadura brasileira, julgamos prestar um serviço à causa da liberdade tão comprometida no Brasil. Esta causa não pode ser indiferente a nenhum pensador; todos que têm pelo Brasil o grande amor que a pátria inspira, a todos que nele admiravam o desenvolvimento da sua livre civilização, sofrem naturalmente com o eclipse atual que a liberdade lá sofre.
De resto é forçoso que alguém fale fora do Brasil — visto que no Brasil ninguém pode falar. Embora, depois de dois meses de silêncio, o governo tenha feito anunciar no Diário Oficial (23 de fevereiro) que respeitaria a liberdade de imprensa, essa liberdade não pode existir, porque existe a ditadura. Como criticar livremente um poder que se arroga o direito de prender, de deportar, de banir? Como acreditar num governo que tantas vezes tem mentido à sua palavra? Não pode o governo, nesse regime do arbitrário, nesse regime sem lei, mudar de opinião em 24 horas, como já repetidamente tem feito?
E justamente! mal nós acabávamos de exprimir esta dúvida, eis que nos anunciam do Brasil pelo telégrafo a publicação de um Decreto sujeitando de novo aos tribunais militares quem escrever ou telegrafar notícias e apreciações falsas ou alarmantes a respeito do Governo Provisório. Ora como o Governo e os seus agentes podem considerar falsas ou alarmantes todas as notícias ou apreciações que lhe não convenham, isto equivale a uma supressão formal da liberdade de imprensa. Na França republicana, os jornais monárquicos podem livremente atacar, e atacam, a República. Na monárquica Itália, na monárquica Espanha, no monárquico Portugal, os jornais republicanos podem abertamente combater, e combatem, a Monarquia. No Brasil o jornalista que ouse insinuar que o sr. Rui Barbosa não é um grande financeiro, ou o sr. Benjamin Constant um grande guerreiro, terá espalhado apreciações falsas, e será metido numa enxovia se a ditadura assim o quiser na ocasião. Foi o que já sucedeu (segundo as notícias de hoje) ao capitão de estado-maior, Saturnino Cardoso. O Brasil coloca-se assim mais baixo que a Turquia. Os jornalistas que tinham saído do silêncio, arriscando-se até à observação, e depois até à tímida censura — recolherão agora precipitadamente ao silêncio, onde ficarão enclausurados, com sentinela à porta. Não restará ao Brasil uma única voz livre: e a consciência pública, que durante cinquenta anos se exerceu tão livremente, ficará apavorada e muda sob a coronha duma espingarda.
O militar que se entregou de corpo e alma à pequena minoria jacobina que o incitou à revolta, deverá pesar bem as suas responsabilidades perante a Pátria, perante a História e perante a Civilização. O momento chegou em que o antigo general Deodoro deve aconselhar em bem da sua terra, e dos homens que são seus irmãos, o Generalíssimo-Ditador-Deodoro. O seu interesse, como a sua glória está em acertar. E que ele considere onde o vai levando essa boemia jacobina, que rola de desacerto em desacerto!…
Que ele considere — porque dele, só dele, depende a restauração que lhe pedem os patriotas brasileiros, a RESTAURAÇÃO DA LIBERDADE, única que poderá salvar a unidade, o crédito, a honra do grande país sul-americano.
25 de Março de 1890.