Dr. Thomas Stockmann é médico da Estação Balneária de uma pequena cidade no interior da Noruega. Seu irmão, Peter Stockmann é Prefeito da cidade. O primeiro é bem casado, tem três filhos e é muito respeitado na cidade, causando inveja no seu irmão solitário. Ambos estão animados com a Estação Balneária que, mesmo antes de ser inaugurada, já está trazendo prosperidade para a cidade e a prova disso são os hotéis que estão recebendo inúmeros pedidos de reservas para a próxima estação.
Os imóveis estão valorizando e a fama a respeito da qualidade das águas da Estação é enorme, prometendo também incluir nos seus turistas aqueles menos afortunados em suas saúdes. Como criador da Estação Dr. Thomas é muito prestigiado, devendo-se a seu irmão a realização do projeto. O fato de Thomas ser “a mente criativa e brilhante” definitivamente incomoda Peter, que detém o poder do cargo público, mas não o reconhecimento que todos na cidade devotam ao seu irmão.
A imprensa da cidade está prestes a publicar um artigo do doutor a respeito da excelente qualidade das águas e das condições higiênicas do Balneário. Em meio a isso, cabe à Sra. Stockmann intervir no relacionamento do seu marido com o cunhado, administrando as diferenças de ambos. Dr. Stockmann tem um bom humor pertinente aos que estão de bem com a vida e o tom do personagem é “três tons acima” de seu irmão, burocrata, invejoso e metódico.
Sutilmente, Ibsen vai delineando o antagonismo que já se prenuncia na história. Num momento de discussão, diz Peter: “as iniciativas particulares devem se submeter, custe o que custar… … às autoridades encarregadas de zelar pelo bem geral”. Peter está tentando intimidar o irmão, por ele gostar de “fazer as coisas por sua própria conta”. Segue-se uma leve discussão e Peter vai embora, chateando Thomas e sua esposa, que pressente algo de errado e tenta “botar panos quentes”, sem sucesso.
O pior está por vir: Thomas solicitou a análise de umas amostras das águas do Balneário e ao contrário do que todos pensavam, as águas são de péssima qualidade, infectadas. Causaram tifo e outros tipos de doença àqueles que tiveram contato com ela. Ingenuamente, o doutor acredita estar fazendo o bem ao povo e à cidade ao querer publicar um artigo na VOZ DO POVO, jornal local, divulgando o fato e obrigando a Prefeitura a adiar a inauguração, para mudar toda a canalização.
A partir deste momento Ibsen “diz a que veio”; o drama está estabelecido. Ao contar para a sua esposa Catarina, sua filha Petra e Hovstad, editor do jornal e “amigo” particular, todos se assustam mas ele começa a entusiasmar-se com o fato de “provar que não é louco”. Ninguém tinha acreditado de que ele pudesse estar certo a respeito desta desconfiança. O relatório à administração da Estação já está pronto, assim como o artigo para o jornal. Falta apenas conversar “cara a cara” com Peter…
Hovstad informa a Thomas que “todos os negócios da cidade” pertencem às famílias tradicionais e altos funcionários públicos e que não vai ser fácil lutar contra eles. Oferece-se como “defensor das minorias na luta contra os poderosos”. As “raposas estão rodeando o galinheiro” mas o doutor não percebe, já sugeriram até fazer uma manifestação, “sem afrontar diretamente as autoridades”, mas Thomas não entende o que está acontecendo.
Seu irmão o procura; o primeiro ponto da discussão é que para Peter, a palavra “envenenar” é “violenta demais”. Para ele, deixar as pessoas tomarem água envenenada é um fato menor, diante do tempo necessário e dos custos para a reforma da canalização. Acusa Thomas de estar arruinando a sua cidade natal e em seguida, o ameaça, também a sua família. Mostra ao irmão a verdadeira face da inimizade escondida, que finalmente encontrou o momento de se concretizar.
Peter declara guerra a Thomas e destila todo o ódio que guardou por tantos anos. A profundidade e perspicácia do autor na construção das falas e dos personagens é uma verdadeira teia que prende o leitor ao seu talento. Ele revela aos poucos a face obscura de Peter, o romantismo e vaidade de Thomas, além dos preconceitos sociais e interesses do mundo a que todos pertencem. Contemporâneo e incômodo. Ibsen mergulha na verdade e consegue o impossível: agradar.
O cinismo de Peter quer obrigar o irmão a fazer um “desmentido público” e informa-o de que ele como funcionário público da Estação Balneária, não tem direito a uma opinião diferente da de seus superiores. O conflito desenrola-se; Peter manipula o jogo aliando-se à imprensa, que vira as costas para Thomas em troca de benesses. Com a aliança entre poder e imprensa, dominar o povo fica fácil.
O médico reúne uma assembléia para expor a situação para a população acreditando que será compreendido, mas os opositores se organizam para impedir que ele fale, levantando falso e jogando o povo contra ele. Percebendo a sua solidão e a posição que agora representa na cidade, toma outra atitude: sem meias-palavras, mostra que a mentira se aliou ao poder e que as pessoas não se importam com isso. Coloca-se em oposição a tudo e a todos que compactuam com o sistema corrompido.
O protagonista polemiza: “a maioria nunca tem razão, a maioria tem o poder, a razão está com as minorias”. As pessoas que estão na frente da sociedade, os “pensantes” são os superiores. O raciocínio cabe à história, mas não é uma verdade absoluta. Há minorias pensantes que são nefastas e autoritárias e sociedades evoluídas e organizadas. Dr. Stockmann defende o pensamento livre, o conhecimento e o contraditório para promover o crescimento moral e material da sociedade. Perfeito.
Dentro do universo criado por Ibsen não há saída para a população, não ainda. A assembléia termina com a declaração pública de que o médico agora é INIMIGO DO POVO. Fim do espetáculo? Ainda não. Ibsen revela todas as podridões do jogo do poder e o quanto algumas pessoas são capazes de rastejar por ele. Dramaturgicamente perfeito, pois quanto mais antipáticos e imorais forem os antagonistas, maior se torna o protagonista.
Os filhos do Dr. Stockmann também sofrem as consequências e são rechaçados por todos na cidade e na própria escola. A casa da família foi apedrejada. Neste clima, o impossível acontece: o desespero vira esperança, a fraqueza vira força. O médico decide continuar na cidade servindo aos desvalidos e ensinando os filhos em casa, junto com outros “moleques de rua” sem oportunidade na vida. Vai ensiná-los a serem grandes e dignos para um dia “caçarem os lobos que infestam a cidade”.
Sua doce esposa Catarina, exemplo da mulher ponderada e amiga, mais uma vez tenta controlar os rompantes de entusiasmo de Thomas para protegê-lo. E mais uma vez, sua determinação em fazer o certo vence seus medos. Ele se declara “o homem mais poderoso de cidade”. (???) Ela e todos os presentes acham que ele enlouqueceu. O doutor então os reúne em volta de si, baixa o tom de voz e revela: “o homem mais poderoso do mundo é o que está mais só.” Caro leitor, isso lhe parece familiar?

Excelente!
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