[Republicação de artigo de 2017. Opinião jurídica e divulgação de livros]
A primeira versão deste artigo foi publicada em 2017. De lá para cá lançamos alguns livros a mais, um Vade Mecum Aduaneiro, o governo internalizou a Convenção de Quioto Revisada (avanço pleiteado há certo tempo), houve advento do novo marco da cabotagem, internalização do Acordo de Facilitação Comercial da OMC, mas nossa participação no comércio exterior continua medíocre e ainda não temos uma Lei Aduaneira forte, com status similar ao Código Tributário.
Recentemente no prefácio da obra “Temas de Direito Aduaneiro em homenagem a Haroldo Gueiros” o Professor Ricardo Xavier Basaldúa relembrou aquilo que nos angustia há certo tempo, o fato do Brasil ser o único país da América Latina a não ter um Código Aduaneiro ou Lei Aduaneira centralizadora.
O que existe é um regulamento aduaneiro que nada mais é do que uma reedição de uma compilação feita no século XIX por um Inspetor de Aduanas que precisava ter à mão as normas que precisava para trabalhar, o que é a mesma razão de edição do Vade Mecum Aduaneiro e uma profusão cada vez maior de Instruções Normativas, que regulamentam procedimentos, mas ao mesmo tempo aumentam a insegurança jurídica para os investidores externos de maneira absurda.
Insistimos nisso porque o comércio exterior equiparado ao nível dos maiores países negociantes é uma das formas de salvar o Brasil, que, por suas idiossincrasias, continua muito hostil ao comércio exterior.
Feita essa breve explanação, a motivação para escrever essas linhas é antiga e a necessidade é cada vez maior de falar sobre isto diante do panorama brasileiro atual, bem como diante de alguns eventos que nos chamam a atenção diariamente, alguns dos quais foram relatados em outro escrito: “O direito aduaneiro, esse desconhecido”.
Na fase de coleta de dados para a escrita do texto: “Finalmente, tudo o que você gostaria de saber sobre direito aduaneiro/” verificou-se que a fundamentação doutrinária mais consistente dos trabalhos publicados no Brasil vem das doutrinas francesa, argentina e espanhola.
Apenas a título de exemplo desses “eventos” que chamam a atenção, temos que, enquanto acordos internacionais de comércio exterior endossam a importância da dupla instância administrativa, surgem vozes impertinentes e desconectadas da realidade global clamando pela extinção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, a tradicional e reconhecidamente importante segunda instância administrativa da estrutura do Ministério da Fazenda.
Por outro lado, a negativa da classe jurídica em debater seriamente a questão e a vinculação dos atos dos servidores da Fazenda à lei (pois como sabemos toda atuação do serviço público precisa ser balizada pela lei) ocasionam a falta de pressão popular necessária para implementar as mudanças legislativas necessárias e incrementam a nossa via crucis pelos tortuosos caminhos de uma legislação ultrapassada, com forte traço arbitrário, que dificulta a aplicação conforme os princípios constitucionais devido ao viés fiscalista que conduz toda a atuação da Receita Federal do Brasil.
A referida visão fiscalista faz inclusive, com que muitas pessoas bem intencionadas e capazes de mudar essa situação dentro da própria Aduana nada façam com receio de enfrentar a ira de determinados grupos que amam a burocracia e dos órgãos de persecução criminal que guardam forte viés repressor, para os quais um servidor repensar a maneira grotesca com que a arrecadação aduaneira é tratada, escolhendo o caminho da razoabilidade e primando pelos princípios constitucionais, certamente sofrerá forte oposição dentro do órgão e acusações que podem ir da esfera administrativa ou até criminal, de condutas ilícitas como “peculato”, apenas pelo agente de boa vontade não querer prolongar o ciclo de aberrações.
Nenhuma pessoa gostaria de jogar a reputação e carreira fora por conta do ideal de uma Aduana mais eficiente, justa e alinhada com valores da Carta Magna, não é mesmo?
Afinal aqui é o país cantado pelo eterno gênio Renato Russo, onde “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação”!
Em um órgão com esse viés fiscalista qualquer deslize do administrado, por menor que seja (um erro em preenchimento de declaração, um esquecimento de documento, algum equívoco que possivelmente poderia ser reparado antes mesmo de causar dano efetivo) e por menos prejudicial que seja deve ser perseguido e até mesmo, levar à falência (pelo vulto das autuações) empresas com décadas de existência – empregadoras de dezenas, centenas, até milhares de pessoas – simplesmente porque houve “infração à lei”.
Assim, observar a dosimetria, proporcionalidade, razoabilidade na aplicação das normas, promover a adequação da estrutura brasileira para aderir às práticas logísticas e tributárias de primeiro mundo a fim de verdadeiramente “entrar no mapa” comercial mundial, atrair investimentos, diminuir o número de litígios no judiciário e produzir uma legislação aduaneira compatível com nossa ordem constitucional e com os acordos que nos comprometemos a cumprir, não se faz.
Afinal, mexer nisso para quê?
Então os advogados aduaneiros precisam “costurar” uma verdadeira colcha de retalhos legislativa para trabalhar, passando pela Constituição Federal, Código Tributário Nacional, compilação de leis referentes ao Direito Administrativo (para os intervenientes); compilação de leis de Direito Regulatório; disposições de contratos internacionais contidas no Código Civil; Parte Segunda do Código Comercial; Lei do Multimodalismo; Legislação Federal sobre documentos públicos, sobre multas referentes a diversas condutas tributárias e não tributárias; se tributárias de natureza principal e acessória; Tratados Internacionais versando sobre mercadorias, serviços, valores, tributação, títulos de crédito; Decreto 37/66; Regulamento Aduaneiro; Instruções Normativas produzidas em volume e velocidade que impõem atualização mensal (muitas vezes várias no mesmo mês); Portarias; Resoluções da CAMEX, CACEX, BACEN, ANVISA, MAPA, MDIC e etc.; regulamentação referente a sistemas e pagamentos, títulos de crédito; International Commercial Terms[i]; vontade soberana do Inspetor da Receita Federal no Porto, Aeroporto ou onde for…é mais ou menos assim que se forma a base legal que regulamenta a atuação no comércio exterior.
Sentiu-se inseguro? Imagine o investidor!? Imagine o empresário!? Imagine a triste figura que o Brasil tem no mundo!
Enquanto isso os profissionais do Direito seguem fingindo que a Aduana é uma prima esquisita da Arrecadação Interna, sobre a qual ninguém gosta de falar, ninguém entende direito e logo deve ser ignorada.
Os poucos profissionais no país que se dedicam a estudar o Direito Aduaneiro e escrever sobre o tema se conhecem, sabem das poucas especializações que há no país.
Duas vezes tentei colocar professores para lecionar a disciplina “Processo Judicial Aduaneiro” na minha pós, advogados renomados, um deles já trabalhou em escritório com atuação aduaneira e sei que tinha muito mais para passar se tivesse focado no que eu pedi: “aula de processo aduaneiro”. Com peças e jurisprudência aduaneiras e não tributárias. É simples, CPC + CTN + Legislação aduaneira e administrativa. Quando fui ver os materiais de aula quase morri. A aula foi de processo tributário. Daí desisti, juntei com a minha favorita (processo administrativo aduaneiro) e agora dobrei o número de aulas, é o que me resta.
Nada obstante, a maioria absoluta da comunidade jurídica ignora deliberadamente o direito aduaneiro, não sabendo sequer a delimitação legal e principiológica da matéria.
Apesar dessa majoritária ignorância no tema é comum setores tributários de grandes escritórios ingressarem com medidas judiciais baseadas em linhas de argumentação jurídica desenvolvidas por essas cabeças pensantes do direito aduaneiro, obterem êxito e determinada medida isolada e doravante em casos similares e pronto, não há mais necessidade de estudar a disciplina aduaneira.
Afinal com o conhecimento do direito tributário e com a argumentação “do pessoal que se dedicou a estudar essa coisa esquisita” já foi atendida a necessidade “nesse tipo de ação” até a próxima “causa esquisita” aparecer!
Caso isso aconteça, copiar-se-á outra argumentação produzida pelas mesmas pessoas anteriormente mencionadas e segue-se fingindo conhecer o que não se conhece e sem a mínima atenção para isso, porque afinal, se há quem pense o Direito Aduaneiro, por que reconhecer a necessidade de se aprofundar na questão e descer do seu pedestal de nova celebridade jurídica aduaneira?
A situação é confortável para os tempos em que vivemos, em que a superficialidade no conhecimento aduaneiro é facilmente disfarçada pela falta de tempo e atenuada pela boa formação em outra área do Direito.
Os cursos de gestão de comércio exterior (área administrativa) não se prestam a capacitar pessoas a pensar esse sistema jurídico combalido, porque o foco é operacional e mercadológico, lidando com circunstâncias e cenários previamente constituídos.
Logo, não adianta negar, da lei que concede anistia vem o novo vigor para as empresas; da lei que reduz a carga tributária nasce um novo investimento em determinado setor; da lei que refinancia a dívida de um ente federativo, surgem recursos para o pagamento de salários de servidores e pensionistas.
Portanto, é da lei que nasce todas essas coisas. Por sua vez, as leis são criadas para regulamentar os eventos da vida em sociedade que carecem de normatização. O evento social impulsiona a criação da norma.
Diante disso, volta à baila a responsabilidade dos operadores e cientistas do Direito de pensar e repensar cenários jurídicos ideais ou ao menos incrementados para construir um País melhor.
A delimitação do Direito Aduaneiro está no artigo https://estudosaduaneiros.com/direito-aduaneiro/. O próximo passo é avançar nas pesquisas e debates para ter nosso Código Aduaneiro adaptado aos termos do Acordo de Facilitação de Comércio, uma legislação processual conjunta e Varas Especializadas para o julgamento judicial das demandas, bem como o aperfeiçoamento do CARF para continuar realizando a adequada apreciação dessa matéria no âmbito administrativo. É urgente e vital.
[i] Incoterms – termos padronizados internacionalmente, que permitem precisar as obrigações dos contratantes quanto ao transporte, pagamento do seguro e determinam precisamente onde é transferida a responsabilidade pela mercadoria.